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terça-feira, novembro 04, 2003

“O SAGRADO HOJE: ‘NOSSA SENHORA DESATADORA DE NÓS’ – UMA SANTA PRÁTICA”



Orientanda: Elizabeth Firmino Pereira. Orientador: Prof. Dr. Flávio Mário de Alcântara Calazans. Co-orientador: Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento. É parte integrante do projeto Ícones femininos... (VER LINK), realizado com bolsa de Iniciação Científica FAPESP, em 2002.

Contact: beth_firmino@yahoo.com.br.


1 - INTRODUÇÃO:

O presente trabalho é parte integrante do projeto, em andamento: “ÍCONES FEMININOS (SAGRADOS E PROFANOS): O ETERNO RETORNO ATRAVÉS DOS TEMPOS E NAS ATUAIS HISTÓRIAS EM QUADRINOS (HQs)”. Conta com bolsa de Iniciação Científica concedida pela FAPESP, sendo orientado pelo Prof. Dr. Flávio Mário de Alcântara Calazans e Co-orientado pelo Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, no Instituto de Artes da UNESP, em São Paulo.
O objetivo desta investigação é analisar a figura da mulher através dos tempos, relacionada ao “sagrado” e as diversas implicações sociais destas imagens, ou ícones.Tal análise se dá em vários campos: psicologia, artes, sociologia, antropologia, história, etc. Entretanto, o foco principal é sempre a relação do indivíduo com a sociedade, tendo como mediadores a arte e o ritual. Para tanto, lançamos mão, também, da análise subliminar, buscando sempre um sentido, ou valor, por trás das evidências de cada aparência.
A escolha de “Nossa Senhora Desatadora de Nós”, dentre tantas outras igualmente cultuados por fiéis, se deve ao curioso “fenômeno de mercado” que se forma em torno dessa devoção; um verdadeiro “boom!”. Outro fator de relevância é o teor das orações, todas com uma preocupação centrada no indivíduo, mas direcionada ao social (‘os nós’). Tudo isso aliado ao fato de que essa devoção foi ‘redescoberta’, ou seja, está ligada ao movimento cíclico do “Eterno Retorno”, de quem nos falam Nietzsche, Mircea Eliade e os Pré – Socráticos, pertence à herança atávica da humanidade ligada à Grande Mãe.
Sem discutir as questões de fé, interessa-nos antes de tudo, conhecer as relações sociais em torno das devoções e os fatos históricos que as sustentam.

2 – O CONCEITO DE ÍCONE:

No seu sentido original, deriva da palavra grega “eidon”, que significa ‘semelhança’, como descreve Chilveres: “A palavra ícone é particularmente empregada quando a imagem é vista como sagrada em si mesma e capaz de facilitar o contato entre ela e a figura retratada (...) foi aplicada em especial às imagens sagradas das igrejas ortodoxas gregas e russas.” Fica evidenciada a idéia de ‘semelhança’ como contato, aproximação, ligação.
Segundo Besançon, “O ícone é uma escrita. Ele toma de empréstimo seus termos à Bíblia, aos apócrifos, à liturgia, à hagiografia, aos sermões dos pais da igreja. Ele se conforma ao gênero literário. O panegírico ajusta a vida dos santos de modo exemplar.” , ou ainda: “(...) é o mundo transfigurado. O ícone é uma janela.”
O conceito de ícone como ‘janela’ em muito se assemelha à utilização mais corrente e conhecida do termo entre nós, contemporâneos, na linguagem de informática. Freedman nos diz: “O ícone é a representação de um objeto em tela, por meio de uma pequena figura (...), usada em interfaces (‘comunicações’) gráficas. ” A idéia de ‘janela’, da representação mínima de algo macro, da comunicação com algo maior, transcendente, sobrevive e ganha outras dimensões.
Segundo Lúcia Santaella, o ícone pertence, dentro da análise semiótica de Charles Sanders Peirce (1839 – 1914), a uma tríade básica da designação de signo: “O signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto (...) o signo não é o objeto, ele apenas está no lugar do objeto.” Essa tríade básica é composta por: ícone, índice e símbolo. Ícone é a primeira referência (Primeiridade) e representa a imagem em si e as representações subseqüêntes que ela possa vir a suscitar. O índice está ligado à idéia de criar conexões (Segundidade) e o símbolo como a transfiguração do global, do genérico (Terceiridade). Segundo Peirce, citado por Santaella “Um símbolo não pode indicar uma coisa particular (...)” O particular é o ícone. O particular que leva ao genérico. Como nos afirma a autora: “O objeto do ícone é sempre uma simples possibilidade, isto é, a possibilidade do objeto de impressão que ele está apto a produzir ao exercitar nossos sentidos.”
Calazans nos apresenta o conceito do “iconeso’’ ,formado pela junção das palavras ‘ícone – imagem’ e ‘eso (do grego) – dentro’, para designar e explicar o sentido de subliminar: a imagem dentro da imagem. Esta justaposição de sentidos, muitas vezes interfere na contextualização (‘índice’) e absorção simbólica do objeto. Nesse sentido, o ícone, pela possibilidade de hibridismo, aponta também para formas de interpretação menos óbvias e, muitas vezes, inconscientes.
O sentido que pretendo dar à palavra ícone é um pouco de tudo isso, é um corte transversal combinando tais sentidos, seja em sua forma tradicional , do “sagrado”, tanto no que hoje se convenciona a designar , na nossa utilização contemporânea, e, portanto, “profana” . Por outro lado, para efeito de análise, tomo também figuras em três dimensões, nas suas representações esculturais e também em fotografias de estátuas, fugindo um pouco à tradição do ícone como imagem em segunda dimensão (pintura e desenho); parto do pressuposto do ícone como imagem materializada, tornada um ‘objeto’ sagrado, portanto, tendo implícita a idéia da ‘forma’, independente de apresentar-se em segunda ou terceira dimensão. Dessa forma, pude analisar várias imagens barrocas de Nossa Senhora e fotografias de deusas da Antigüidade e do período pré-histórico, esculpidas em barro ou pedra, como a deusa de Çatal Huyuk, por exemplo. Tal liberdade se deve ao fato de o termo “ícone” já ter, há muito, suplantado o seu sentido original e de hoje entre nós, existir de modo quase figurativo, associado sempre a imagens, que por sua força e expressão, nos arrebatam. Imagens/ visões que transcendem a si próprias.

3 – O CULTO À VIRGEM MARIA:

O culto à Virgem Maria nasceu da arte funerária, em Roma antiga, no Paleocristianismo, por volta do século III, sendo os primeiros ícones encontrados em catacumbas em Priscila e Trasone. O culto à Virgem tomou vulto por volta do século XII, substituindo o culto à dama, no culto cavalheresco. Sobre este mesmo tema, Woolger cita Jung: “Essa assimilação à simbologia geral cristã foi um golpe de morte ao culto da mulher, que era um broto que florescia no processo de aprimoramento da alma do homem (...)”
Essa substituição deixou marcas muito depreciativas na figura da mulher, entre elas, a crença em bruxas, e sua associação ao feminino no sentido do carnal, do real, físico; em contraste com figura etérea da Virgem. Essas marcas moldaram, em grande parte, a sociedade ocidental, como Jung nos coloca: “A depreciação relativa da mulher de verdade é(...) compensada por impulsos demoníacos(do inconsciente que ressurgem) projetadas sobre o objeto. Num certo sentido, o homem ama menos a mulher como resultado dessa depreciação relativa – e assim ela aparece como a perseguidora, ie., uma bruxa. Daí a fantasia medieval sobre as bruxas, essa mácula inextirpável sobre o final da Idade Média, surgida paralelamente a - e, na realidade, como um resultado da – intensificação da adoração da Virgem.”
Embora o culto à Virgem Maria tenha surgido para “(...) mudar o nome de Eva.” , ‘divinizando’ a imagem da mulher, libertando-a do pecado, quando confrontado com as necessidades reais das mulheres de verdade, o choque era brutal.
Trazia de volta o caráter ‘sagrado’ da mulher das religiões antigas, porém de forma bastante modificada, mais pelo apelo popular do que por encorajamento do clero, como nos coloca Marie-France Boyer, visto que “(...)seus templos eram construídos sobre os antigos templos de Ísis, de Cibele e ainda de grandes divindades incas, a devoção popular prontamente assimilou um único mito feminino, eterno.” Entretanto, como paradigma para a realidade das mulheres era bastante cruel, por ser inatingível.
De acordo com Mircea Eliade, o ‘eterno retorno’ , no sentido do retorno cíclico de deuses, valores e situações é uma característica das sociedades “aistóricas” (sic.): parte da negação da história; ou seja, da negação da ‘mudança definitiva’. O próprio Eliade coloca que tal posicionamento seria contrário à idéia de cristianismo, por se este tratar da ‘contagem’ de um novo tempo, servindo inclusive como demarcação de uma era, a “Era Cristã”, portanto, uma demarcação histórica. Talvez seja essa a proposição teológica, mas o “ritual”, em qualquer época, lugar ou religião, parte do princípio da ‘encenação’, da repetição celebrativa, e como podemos constatar na própria Celebração Eucarística (Missa), o cristianismo não foge a isso. Em Nietzsche encontramos o ‘eterno retorno’ de algo humano, pequeno ou grande, que vai se perdendo pelo tempo, sendo esquecido e morre, até retornar, de forma celebrativa, como uma revitalização cíclica:
“Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser.
Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se, eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser.”
Cabe lembrar aqui, que o termo ‘virgem’, na Antigüidade, não tinha nenhuma relação com castidade, era usado para designar a mulher (ou deidade) que não era casada e que não pertencia a homem nenhum, senão a si própria de modo especial; podendo dedicar-se ao templo, à Deus . Nesse sentido, tal estado era mais interior que exterior, sendo, portando mutável, reversível e inerente à mulher, a todas elas.
Dessa forma ‘enviesada’ o culto à deusa mãe sobrevive até hoje dento de
uma religião patriarcal. Embora despojado de seu poder e autonomia, serviu e serve ainda, como fator aglutinador de fiéis, na forma de “Devoções”, sem as quais seria impensável tal expansão.
Surge no século XV o “Malleus Maleficarum” (O Martelo das Feiticeiras), o guia da Inquisição, escrito por dois monges dominicanos: Heinrich Kramer e James Sprenger. Nesta obra encontram-se todas as descrições para os sintomas de ‘bruxaria’, ‘feitiçaria’, ‘possessão’, bem como as devidas punições. Carlos Nogueira cita o Malleus em sua explicação para a palavra “feminina”: “(...) Tudo indicado pela origem da palavra Femina, que provém de Fe e Minus, pois a mulher é sempre fraca para manter e preservar a fé.”
Durante o período da Inquisição, segundo Carlos Nogueira, as mulheres eram tidas como altamente 'sexuadas' e eram acusadas de “copularem com o Diabo “, segundo Malleus. Nogueira estabelece também uma distinção entre feitiçaria e bruxaria, sendo a primeira uma atividade urbana, ligada à magia amatória, herdeira de tradições antigas como a magia amatória grega; enquanto que a bruxaria seria uma atividade rural, desprovida de rituais mais elaborados e ligada aos ciclos da natureza, por ser inerente às culturas tradicionais locais, talvez por essa razão, mais praticada entre as velhas senhoras. Com relação `a feitiçaria, Nogueira nos lembra que esta visava a satisfação pessoal e amorosa das mulheres da época, que buscavam no sobrenatural o remédio para as suas carências, num momento histórico em que os homens partiam para as “Cruzadas” e a conquista da América, nem sempre regressando. Daí decorrentes as perseguições e punições sofridas por essas mulheres pela Inquisição.
Rose Marie Muraro analisa a questão da Inquisição como o processo de repressão social inerente à formação da sociedade capitalista:
“O poder disperso e frouxo do sistema feudal para sobrevier é obrigado, a partir do século XIII, a centralizar, a hierarquizar (...) A religião católica, e mais tarde, a protestante contribuíram de maneira decisiva para essa centralização, (...) e o fizeram através dos tribunais da Inquisição (...) Este “expurgo” visava colocar dentro de regras do comportamento dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais ferozes excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e à guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres... Era essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio mesmo do feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a sexualidade, conforme constata a obra de Michel Foucault, História da sexualidade.Começa a se construir ali o corpo dócil do futuro trabalhador que vai ser alienado de seu trabalho e que não se rebelará.”
No século XVIII, a questão da mortalidade infantil começou a tornar-se um problema de Estado, e isso exigiu uma mudança significativa na imagem da mulher, até então, colocada no mesmo patamar que os filhos. Era necessário formar a imagem da ‘mãe’, como ressalta Sílvia Nunes: “Somente com a virada do século XVIII, a partir da necessidade política de situar a mulher como guardiã da infância, observa-se uma mudança significativa na representação do sexo feminino. Afinal, como dar uma responsabilidade tão grande a um ser tão desqualificado? (...) Para que as mulheres pudessem assumir os encargos da maternidade, foi preciso uma mudança radical na sua imagem. A mulher não é mais identificada como um criatura diabólica. (...) Eva sede a Maria.”
Para Dr. Jung, a Virgem representa o terceiro aspecto da Anima – o componente feminino no homem – sendo o primeiro aspecto representado por Eva, o primitivo, o relacionamento biológico; o segundo personifica o aspecto romântico, estético e sexual, como Helena de Fausto; o terceiro pela Virgem Maria, que eleva o amor à forma espiritual; e , o quarto aspecto da Anima é simbolizado pela Sapiência, a sabedoria que transcende, como a Sulamita do “Cântico dos Cânticos” . Como já discutimos anteriormente, o culto à Virgem Maria veio a substituir o culto à mulher, na Tradição Cavalheiresca, dessa forma perdendo seu caráter individual, como Jung comenta .

4 – O SAGRADO HOJE: “Maria, Desatadora dos Nós” – Uma Santa Prática.

Freud, já em 1930, antevia todo o desconforto e a opressão do homem moderno nas sociedades urbanas em seu texto “O mal-estar na civilização”; embora reconhecesse os benefícios e necessidades de tais organizações sociais. Hoje, com as superpopulações existentes nos centros urbanos, esse mal-estar torna-se muito maior. Com certeza, a tentativa de “consolação religiosa”, como o próprio Freud coloca no mesmo texto, é igualmente importante.
Embora exista maior profundidade e complexidade no fenômeno religioso, que uma simples análise à luz do desenvolvimento social apenas elucida, é inegável a contribuição de Freud e da psicanálise à formação da cultura vigente e à sociedade de consumo, como se apresenta hoje em suas várias relações e nas várias formas de comércio popular que se desenvolvem, inclusive em torno da devoção religiosa.
Como pudemos constatar em nossas pesquisas de campo e teóricas, as devoções à Virgem Maria fogem um pouco aos padrões devocionais da Igreja Católica Apostólica Romana, especialmente por estarem fortemente ancoradas às devoções populares, tendo surgido antes mesmo dos dogmas, só posteriormente sendo ‘legitimadas’ pôr eles. Entre os primeiro ícones da Virgem, que datam do século II ou III e a sua dogmatização, decorreram dois séculos. Tanto que, segundo Marie-France Boyer: “Em 431, quando o concílio de Éfeso a declara oficialmente mãe de Deus, Theotokos, o culto da Virgem já é muito popular (...)” Devemos nos lembrar que Éfeso (antiga cidade grega da Ásia Menor) é a morada da grande ‘Diana de Éfeso’, que foi lá também a morada final de Maria, a mãe de Jesus, segundo os estudos do mesmo Freud, que os relata no texto “Grande é Diana dos Efésios”:
“Pôr volta de 54 A.D., o apóstolo Paulo passou diversos anos em Éfeso. Pregou, realizou milagres e encontrou muitos seguidores ... Em conseqüência da disseminação de sua doutrina, houve uma queda no comércio dos ourives, que costumavam fazer lembranças do lugar sagrado... Revoltaram-se e, aos gritos infindavelmente repetidos, de ‘Grande é Diana dos Efésios! ‘, afluiram pela rua principal, chamada ‘Arcádia’, até o teatro, onde seu líder pronunciou discurso incendiário contra os judeus e contra Paulo...”
Freud afirma, ainda, que Maria foi residir em Éfeso na companhia do apóstolo João, a quem passou a seguir, pôr ser esse o desejo manifestado pôr Jesus ainda na cruz. João Evangelista, a quem são atribuídos o quarto Evangélio e o Apocalípse fundou em Èfeso a primeira igreja dedicada a Maria :
“(...) João dedicou-se a Maria. Desse modo, quando João foi para Éfeso, Maria o acompanhou, e, pôr conseguinte, ao lado da igreja do apóstolo em Éfeso, foi construída a primeira basílica em honra da nova deusa-mãe dos cristãos. Sua existência é confirmada a partir do século IV. Agora, mais uma vez a cidade tinha sua grande deusa e, fora o nome, pouca modificação houve(...)”
Freud cita ainda, no mesmo texto, uma ‘aparição’ da Virgem de Éfeso a uma menina alemã:
“(...) Em nossos próprios dias, ela apareceu como uma virgem santa a uma piedosa menina alemã, Katharina Emmerich, em Dülmer (cidade Vestfália). Descreveu a esta sua viagem a Éfeso, os móveis da casa em que lá vivera e na qual morrera, o formato de seu leito, e assim pôr diante. E tanto a casa quanto o leito foram de fato encontrados, exatamente como a virgem os descrevera, e são mais uma vez a meta das peregrinações dos fiéis.”
Apesar do concílio de Èfeso a figura de Maria só foi definitivamente divinizada em 1854, quando o papa Pio IX proclama o dogma de ‘Imaculada Conceição’, segundo o qual Maria ascenderia aos céus; ou melhor: ao plano divino. Tais dogmas apenas legitimam o que já existia, mesmo antes do cristianismo, em termos de devoção popular à figura da Mãe.
Essas devoções guardam em si muitos resquícios de cultos a antigas deusas pagãs matriarcais da antigüidade, seja na Europa, onde muitas igrejas foram construídas sobre antigos templos de deusas com Isthar, por exemplo; seja no México, onde a Virgem ‘apareceu’ a um índio pobre, Dom Juan, no mesmo local onde era cultuada a deusa nativa; seja no próprio inconsciente de devotos espalhados pelo mundo todo e que sempre a associam à imagem da “Mãe”: protetora, amorosa, salvadora, universal, abrangente. Mesmo fugindo ao padrões habituais da Igreja, ela é um grande fator de aglutinação de fiéis.
Uma das características fundamentais do culto Mariano é sua grande capacidade adaptiva. Nesse sentido, vista a grande dificuldade apresentada pela vida em sociedade, a fé desempenha uma papel de grande importância. Esta Fé está longe da mera contemplação e baseia-se em expectativas e necessidades reais. Tais necessidades levaram à atualização de uma devoção que surgiu na Alemanha, no início do século XVIII. De acordo com Cláudia de Castro Lima:
“A Desatadora surgiu em 1700, quando um padre da cidade de Augsburg, Alemanha, encomendou um quadro da Virgem ao pintor Johann Schmittdener. A ‘musa inspiradora’ do artista foi uma oração de Santo Irineu, que dizia o seguinte: ‘Eva, pôr sua desobediência, atou o nó da desgraça para o gênero humano. Ao contrário, Maria, pôr sua obediência, o desatou’. Johann então pintou a Virgem no centro do quadro. Um anjo entrega em sua mão esquerda uma fita cheia de nós. Outro recebe, da mão direita da Virgem Maria, a fita já sem os nós. A santa, que desata os tais nozinhos, está pisando numa serpente, representante do Mal. Nascia aí Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Ela foi cultuada muito tempo apenas naquele pequeno povoado alemão, até ser descoberta pelos argentinos, há cerca de vinte anos, e ter chegado ao Brasil há mais ou menos dois anos(...)”.
No sentido de atender aos anseios prático dos fiéis, forma coro com alguns santos também emergenciais, tais como: Santo Expedito (das “causas urgentes”); São Nunguinho (“dos objetos perdidos”); Santo Antônio (“casamenteiro”), e tantos outros... É a Virgem Maria “atualizada” e imersa no turbilhão das relações inter-pessoais dos fiéis. O que chama a atenção é o teor psicológico de inter-relação com o outro, implícito no conteúdo das orações, como poderá demonstrar o fragmento a seguir:
“(...) Ajuda-me agora a perdoar todas as pessoas
que consciente ou inconscientemente
provocaram este nó.
Dá-me, também, a graça
De me perdoar pôr ter
Provocado este nó(...)”

O teor central das orações dedicadas a ‘Maria, Desatadora de Nós’, gira sempre em torno de obstáculos infligidos pôr outro ou auto-infligidos, mas fatores que inegavelmente incomodam e dificultam a vida das pessoas e suas relações com outras. Essa ‘atualização’ toma forma na ampla difusão que esta devoção tem recebido pôr parte da mídia brasileiro, ocupando vários espaços: televisão, rádio, revistas populares, além dos folhetos e “novenas” , pulseirinhas, etc... De certa forma constitui-se um mercado em torno do fenômeno que, independente das questões da fé religiosa, assume também a forma ‘modismo’.
Essa dimensão do ‘sagrado’: prática, funcional, encontrada tantas vezes nas esquinas, panfletos, bancas de revistas, etc; contrasta-se um pouco com a sua manifestação, embora esporádica, nas Histórias em Quadrinhos. Nesse meio, essencialmente ‘profano’, pôr estar dissociado das questões da religiosidade, a figura da Virgem, quando surge, é sempre envolta em mistério. Exemplo disso será encontrado na iconografia anexa, que mostra o “encontro” entre Nossa Senhora Aparecida e os ‘Piratas do Tietê’; ver também o ícone de “Maria, Desatadora de Nós”, anexo.
Esses fenômenos de comoção popular evidenciam um ‘deslocamento’ entre o ‘sagrado’ e o ‘profano’ nas necessidades do homem moderno. Deslocamento este que sempre existiu e sempre existirá, pôr ser inerente às transformações constantes do ser humano sobre a Terra, relacionado à cultura como elemento vivo.
NOTA ICONOGRÁFICA: “Maria, desatadora de nós”, o quadro(uma réplica do original) que está exposto na Igreja Maria Porta do Céu, em Campinas-SP, mostra a figura de Maria de pé, centralizada, pisando sobre a Lua e esmagando a Serpente. Está ladeada por dois Anjos, o da esquerda segura uma fita emaranhada de nós, Maria desata-os ao centro, à direta o segundo Anjo segura a extremidade da fita sem os nós. Acima, ao centro, está um pombo branco (símbolo cristão do Divino Espírito Santo); a Virgem está também ladeada por inúmero Querubins, em segundo plano. Abaixo, num plano mais escuro, há um homem que avança a passos trôpegos, levado pelas mãos de um Anjo, esse é o plano terrestre.
Certamente essa imagem, de maneira bastante apropriada, nos dá a verdadeira dimensão da ‘cotidianização’ da devoção e da fé, bem como uma alusão subliminar de algo que eternamente


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Contact: beth_firmino@yahoo.com.br.


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